Uma das grandes diferenças entre o sistema da magia divina e outros sistemas teúrgicos ocidentais está na forma de construção das ordens mágicas. Somos instruídos em todo o tempo a criar as ordens mágicas por meio da atribuição de verbos correspondentes aos Tronos e mistérios evocados, de modo que a plasticidade do sistema de magia divina é impressionante. Em outras palavras, dentro da sistemática da magia divina somos capazes de propor soluções especificamente direcionadas às particularidades dos dramas vividos pelos beneficiados, ao passo em que esse nível de personalização é consideravelmente mais difícil de ser manobrado dentro de alguns outros sistemas magísticos. Entretanto, será que isso é realmente uma vantagem absoluta da magia divina?
Me parece que nem sempre. Tomo como exemplo as funções mágicas de limpeza astral, tão bem executadas pela magia divina quando as ordens mágicas são bem construídas. Observemos, porém que construir bem uma ordem mágica de limpeza não é tarefa simples. Existem algumas dúvidas e diversas certezas na bagagem do mago que certamente influenciarão e, inevitavelmente, limitarão a construção da ordem mágica. Primeiro, porque não se pode se defender de algo que não se sabe. Qualquer mago sabe o que são obsessores, eguns, kiumbas, miasmas, larvas astrais e outros termos mais populares. Os mais atentos saberão também o que são cordões energéticos, portais, gênios, elementares. Mas quantos sabem o que são daimons, cacodaimons, servidores, iyamis, djinns, lwas? Quantos se lembram que, às vezes, as obsessões são operadas por espíritos encarnados e as que as mais nocivas energias são as produzidas pelos pensamentos doentios de cada um? E quais outras influências espirituais fogem da nossa compreensão? Precisaremos concordar que é impossível nomearmos todas as influências sobre as quais a magia divina deverá atuar.
Talvez o caro leitor indague que é só dar algumas ordens mágicas abrangentes e acrescentar "todas as outras influências negativas que estiverem atuando contra mim/fulano". Respondo, então, que se isso for verdadeiramente eficaz não há necessidade de nomear nenhum agente maléfico. Uma ordem mágica que nomeia tudo que o mago conhece seria tão eficaz quanto uma ordem mágica que contenha os mesmos verbos direcionados a "todas as influências negativas que estiverem atuando". Entretanto, isso não acontece. Já fiz diversas magias de limpeza, mas as mais eficazes são também as mais longas e que nos demandam maior esforço. Esforço... Estará aí o nosso trunfo?
E aqui cabe um acréscimo que talvez seja útil, embora represente também um pequeno desvio na linha de raciocínio até então desenvolvida. Sabe-se que a maioria das magias pede um estado alterado de consciência, denominado "gnose" por alguns magistas. Geralmente, em práticas teúrgicas, esse estado alterado de consciência é produzido por meio de profundas meditações. Enquanto magos de magia divina podemos identificar esse estado alterado de consciência, sobretudo, em nossas iniciações. As meditações e respirações controladas, assim como a própria "imantação" tem o efeito de alterar o estado da nossa mente, desconectando-a do profano e focando nos atos mágicos. Outra coisa que nos ajuda a entrar e, sobretudo, manter esse estado de consciência é justamente o foco por tempo prolongado nas ordens mágicas. Trata-se de uma meditação similar à recitação de mantras em um japamala - a mente objetiva e prática é posta em segundo plano para que a mente subjetiva e habilitada a se conectar com a consciência cósmica trabalha com mais vigor. Essa pode ser uma explicação para o ganho de efetividade em ordens mágicas mais detalhadas e longas.
Voltemos ao tema. Sabemos também que outros sistemas mágicos são muito mais sucintos ao abordar essa temática de limpezas astrais, sobretudo as mais superficiais. Na verdade, esses sistemas contam com uma prática direcionada à limpeza astral, geralmente performada antes e depois de qualquer ritual: o banimento. Sua função é restaurar a ordem natural das coisas, literalmente banindo todas as energias que não tiverem um mínimo de compatibilidade com o nosso plano. A título de exemplo podemos citar o Ritual Menor do Pentagrama (quem quiser saber detalhes, existem diversos tutoriais na internet). No RMP clássico evocam-se os nomes de Deus segundo a tradição judaico-cristã e alguns anjos, assim como símbolos e outros recursos utilizados por algumas tradições. Em teoria, funciona como uma bomba direcionada pelo magista para o local onde ele está - tudo que não for suficientemente compatível com o nosso plano é banido para seu local de pertencimento. E quanto mais convicto está o mago de sua vontade, mais eficaz é o banimento.
Se compararmos os dois modos de operação, chegaremos à conclusão de que os rituais de magia divina podem encontrar uma grave limitação: o conhecimento do mago. Essa limitação é evitada nos banimentos, em que a onisciência é evocada não apenas para executar a limpeza, mas também para identificar a sujeira. E então, o que podemos tirar de conclusão de toda essa história?
Entender as limitações do nosso sistema de magia nos impele não apenas a tomar novas direções, como também a ter significativas reflexões a respeito das nossas convicções. Pergunto aos irmãos em magia: Quantos sistemas magísticos fora do nosso nós conhecemos? O que sabemos sobre os mecanismos de magia negativa? Qual é a responsabilidade que evocamos sobre nós mesmos quando deixamos de atender com eficácia por causa de nossa própria ignorância? Observamos que outros sistemas podem nos dar uma dica importante. O mago deve assumir sua posição de autoridade, pois todos os mistérios o obedecem na execução de seu ofício, ao mesmo tempo em que deve ser humilde a ponto de solicitar a sustentação d'Aquele que lhe presenteia com a própria autoridade. Devo nomear tudo que eu conheço, mas terei sempre que rogar a Deus que sua Onisciência Divina me ampare durante o ritual. Em outras palavras, pedimos a Deus que seja feita Sua vontade, e que sejamos Seu instrumento em Sua obra, e fazemos todo o possível para sermos o melhor instrumento com plena consciência de que jamais o seremos. Com essa consciência, poderemos comandar que tudo seja recolhido, e assim será porque merecemos. Por misericórdia, Deus opera por meio de nós pacientemente e nos permite sermos também deuses por participação. Então, e só então, quando empregamos todo o nosso esforço psíquico e espiritual e depois rogamos a Deus por sua misericórdia, podemos ser colocados na posição de Magos da Magia Divina. Unimos assim a Vontade de Deus à nossa, e manifestamos por meio da nossa vontade a Vontade Divina. Aí sim poderemos dizer que o nosso sistema é realmente tudo que nossos mestres nos ensinaram.
Conquistada essa etapa, pergunto: qual vontade é mais potente do que a Vontade Divina? Quem tem mais legitimidade para mover os moinhos do cosmos, se não o próprio Criador por meio de seu instrumento?
Façamos todo o esforço que pudermos, aprendamos tudo que estiver ao nosso alcance, trabalhemos o nosso íntimo para entender verdadeiramente a nós mesmos e aos nossos semelhantes. Depois desse esforço, saibamos que somos limitados pela nossa vasta ignorância e roguemos e agradeçamos a Deus por sua misericórdia. Somos inúteis sem Deus e nosso esforço, dirigido pela vontade sincera de sermos instrumentos de Deus, é a única coisa que nos dignifica. Mas também somos habilitados por Deus para operarmos em sua criação, e recebemos d'Ele a verdadeira autoridade. Ao final dessa jornada, se tivermos sorte, teremos acumulado um pouco de luz em nossas consciências e corações.
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